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Moçambique Do Outro Lado Do Tempo

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Moçambique Do Outro Lado Do Tempo

O filme original Moçambique “No Outro Lado Do Tempo” é uma realização da ComSom com produção da BEJA FILMES. Assistentes de cãmera: João Carreira e Domingos Muianga. Música: Artur Fonseca e canções por João Maria Tudela. Som e mistura final: Fernando Beja. Locução: José Manuel Lázaro. Realização e fotografia: Luiz Beja. Direção de produção em Moçambique: INGE PREIS.

Este filme é dedicado pela BEJA FILMES a todos queles que nasceram em Moçambique ou ali viveram parte da sua existência.

O filme original foi adaptado por Moçambique para Memória Futura. Foi dividido em secções de menor duração e tamanho, dedicadas aos distritos de Moçambique.

O fundo musical foi alterado, optando-se por música instrumental dos anos 60, aqui e ali intervalada, quando tal é exigido pela locução, por canções de João Maria Tudela.

A voz de José Manuel Lázaro foi substituída por texto legendado a partir da transcrição rigorosa da sua locução.

A Introdução e a secção dedicada ao distrito de Lourenço Marques já estão disponíveis para serem visualizadas. Abaixo dos vídeos, está a transcrição completa da locução substituída por legendagem.

Moçambique Do Outro Lado Do Tempo – Introdução

Moçambique Do Outro Lado Do Tempo – Introdução

Corre África, corre. Corre ao ritmo da gazela, entre o rio, a planície e a montanha, corre Moçambique. Corre em direção a mil sóis que te aquecem e te amam.

No princípio, a terra era desconhecida do homem branco, uma terra banhada por uma luz brilhante que nas tardes cálidas pintava o céu de um vermelho sem par.

No princípio, era uma terra onde os animais selvagens corriam livres nos campos imensos e onde os rios rasgavam as cordilheiras majestosas feitas de rocha dura.

No princípio, era a terra onde as dimensões dos horizontes se igualavam às dimensões da imaginação e do sonho.

No princípio, era uma terra habitada por gentes de pele negra que viviam em cabanas de cana e colmo, agrupadas em tribos possuidoras de milenários costumes vindos da noite dos tempos.

No princípio, era uma terra que guardava no seu fértil ventre, fruto de mil promessas de incontáveis riquezas.

No século XV, do Portugal medieval, partiram naus e caravelas carregadas de navegadores, militares, religiosos, fidalgos, comerciantes, aventureiros e bandidos, uns em busca de novas rotas comerciais, outros ávidos de riquezas prometidas ou sonhadas.

Bordeando as costas do vasto continente africano, tentando atingir a cobiçada Índia, estes portugueses aportaram então a uma terra ubérrima, onde os nativos jamais haviam visto homens brancos e a que deram o nome de Moçambique.

Os que aqui ficaram ou junto à costa ou abriram os caminhos da selva até aos estandes a perder de vista e se fixaram nos confins dos matagais numa epopeia de inegável valor.

Foram os pioneiros do futuro Moçambique, do Moçambique negro, branco e mestiço. Nenhum povo na história da colonização europeia da África Negra se misturou e viveu tão naturalmente ao nível humano como o português.

Nativos desta terra africana passaram a ser os descendentes destes homens, que durante gerações conheceram os céus vermelhos dos entardeceres africanos como o céu da sua terra.

Todos eles, negros, brancos e mestiços, foram os obreiros das bases sociais e económicas da atual nação moçambicana.

Vamos recuar alguns anos, até ao tempo em que milhares de portugueses partiam, deixando para trás este Moçambique imenso, terra natal de tantos eles, e cenário físico e humano da vida de muitos outros, que nesta terra feiticeira viveram os melhores anos da sua vida. Imagens inesquecíveis gravadas algures no outro lado do tempo.

Moçambique Do Outro Lado Do Tempo – Lourenço Marques

Moçambique Do Outro Lado Do Tempo – Lourenço Marques

Lourenço Marques era a minha cidade. Não importa se nela nasci ou apenas vivi parte da minha existência. Se sou branco, negro, mestiço, indiano ou chinês. Ela era e será sempre a minha cidade.

Recordo como se fosse hoje cada recanto, cada edifício. Recordo as suas amplas e bem traçadas avenidas, sempre cheias de um trânsito crescente.

Recordo-me dos novos edifícios que cresciam por toda parte, a prova do esforço dos seus habitantes.

Reinaldo Ferreira, o poeta que cantou e amou esta cidade, chamou-lhe Cidade Feitiço. E é bem certo que a antiga Lourenço Marques tinha o condão de prender e enfeitiçar.

Presos aos seus encantos ficavam todos aqueles que, do distante Portugal, para aqui vinham trazendo consigo irmãos, pais, filhos, em demanda de melhores horizontes longe do velho Continente.

O cosmopolitismo da antiga Lourenço Marques era uma das suas características.

As cidades não são feitas somente de prédios, ruas e avenidas, mas sobretudo de gente. Foi esta gente, este povo negro, branco e mestiço que construiu uma das mais belas cidades africanas.

Lourenço Marques de ontem, Maputo de hoje. Nas ruas cruzavam-se gentes de todos os tipos humanos, uma simbiose de uma terra bem africana com a velha Europa, a Índia e a longínqua China.

Cada rosto era uma vida. O que será feito e onde estão estas pessoas? Ao espalharem-se por tantas e variadas terras, desde Portugal à África do Sul, ao Brasil e até à Austrália, de certo levaram consigo um pouco da nossa cidade e do modo de viver e agir das suas gentes.

Separadas e dispersas por muitas e variadas terras, as pessoas que um dia partiram, jamais esquecerão a Cidade das Acácias.

Os que aqui nasceram amavam-na pelo simples facto de ela ser a sua terra.

Aos que lentamente envelheceram e não mais puderam voltar, resta-lhes a legítima saudade da juventude e do cenário africano onde ela foi vivida.

Aqueles que longe da Cidade Feitiço partiram já para sempre, levaram consigo essa eterna saudade para a sua viagem sem tempo.

Do outro lado do tempo, eu vejo o velho Continental, onde ao cair da tarde se reuniam os amigos de sempre, que entre um café e uma torrada, apreciavam o vai e vem dos passantes.

Este era o centro nevrálgico da vida da cidade. Era a zona dos cafés e das lojas e onde se situavam as explanadas mais frequentadas da baixa de Lourenço Marques.

Do outro lado do tempo, eu vejo o Djambu e ainda tenho gravados os rostos que compunham a paisagem humana desta movimentada esquina.

E vejo também os artistas negros vendendo as belas peças de sua autoria, prova indiscutível do seu poder criativo. José, Domingos, Macavel, seriam estes os seus nomes? Era de certeza esta a sua arte!

Nos subúrbios da cidade de cimento, eu recordo a visita ao ateliê de um dos mais talentosos escultores de toda a África, Chissano, o escultor dos mochos, o símbolo africano da tristeza.

Recordo-me que trabalhava continuamente, obsecado pelo seu mundo interior, que procurava sempre transmitir a golpes de escopro.

Do outro lado do tempo eu vejo outro artista, natural do Minho, que amou e pintou a terra e a gente moçambicana, Araújo Soares.

Cada tela, cada desenho, é um hino à gentes e à alma do Povo Moçambicano.

Do outro lado do tempo, eu recordo essa gente e esse povo que enchia os mercados coloridos.

Do outro lado do tempo, eu vejo os monumentos erguidos em honra dos heróis negros e brancos que combateram e morreram por um mundo melhor.

Vejo a estação dos caminhos de ferro de Moçambique, em Lourenço Marques, e recordo viagens imensas através das savanas, cruzando as fronteiras de Moçambique e a caminho da vizinha África do Sul.

Nessa fronteira, em Ressano Garcia, eu vejo agora às centenas os milhares de moçambicanos que regressavam do seu trabalho nas minas de carvão e ouro sul-africanas, os Magaíças, e parece-me ouvir ainda João Maria Tudela a interpretar uma das suas mais belas canções.

Do outro lado do tempo, eu assisto ao constante bulício do Cais Jordão, frequentado por dezenas de navios provenientes de todos os cantos do mundo.

Lembro-me que em Lourenço Marques se situava um dos mais belos museus de vida selvagem de toda a África. Recordo a imobilidade dos animais embalsamados em contraponto com aqueles que habitavam o velho zoo na estrada de Marraquene.

Quantas crianças, hoje homens, não viveram fantasias ao visitarem este Museu e este Zoo?

Voltando a página do tempo, relembro a vida agitada de Lourenço Marques nos anos 70. A cidade era procurada por turistas de toda a parte, que vinham de longe viver momentos inesquecíveis de tranquilidade e bem estar.

Os seus hotéis, bem conhecidos além fronteiras, foram sempre uma referência de qualidade internacional.

Do outro lado do tempo, eu ainda recordo o velho Piripiri, aquele simpático restaurante sinónimo de Galinhas à Cafreal e Camarão Grelhado.

Do outro lado do tempo, eu percorro a longa Marginal da Costa do Sol à Praia da Polana e vejo as praias que bordejavam a bela Baía do Espírito Santo, brilhando ao sol da manhã.

Estas imagens, gravadas na minha memória, fazem-me quase sentir o calor daquele magnífico sol.

Do outro lado do tempo, eu vejo uma terra onde cada evento, cada acontecimento, mobilizava sempre milhares de pessoas interessadas.

O ambiente cosmopolita da cidade de feitiço estava bem patente nesses eventos e na qualidade da sua organização.

Do outro lado do templo, eu vejo também as tardes calmas de Domingo em que as famílias se encontravam ao longo da Marginal, junto ao Zambi, apreciando os poentes maravilhosos refletidos na Baía do Espírito Santo e quase sinto, como diria Reinaldo Ferreira, “aquele cheiro bom que a terra tem quando a chuva cai”.

As noites em Lourenço Marques tinham o fascínio especial e o mágico encontro entre a África e outros continentes. As luzes dos neons explodiam e a fervilhante vida noturna da grande e bela cidade surgia em toda a sua vitalidade.

Restaurantes sofisticados e Bares enchiam a cidade, oferecendo o que de melhor havia em todo o mundo.

O ritmo da noite Laurentina obedecia ao compasso do ritmo das músicas da Europa, da América e da África, e a juventude era igual à juventude de qualquer parte do mundo.

Na minha viagem ao passado, o meu pensamento voa agora ao longo das costas do sul de Moçambique e sobre aquele esplendoroso e quente mar azul.

Ponta Malongane, Ponta do Ouro, uma das mais espetaculares praias do Sul do Save.

São imagens que nunca esquecerei.

Do outro lado do tempo, eu vejo o edifício do Rádio Clube de Moçambique e lembro-me da figura dos seus locutores e dos intérpretes do teatro em sua casa.

Ao olhar as páginas do meu álbum em movimento, eu não posso esquecer as crianças daquele outro lado do tempo. Algumas destas crianças são hoje pais de família, juntas passaram os momentos mais importantes da sua infância nas escolas e infantários de Lourenço Marques, do Xai-xai, da Beira, de Quelimane, de Tete ou de Porto Amélia.

Cresceram lado a lado e depois estudaram nos liceus da sua juventude, preparando o seu futuro e o futuro da terra onde nasceram. À maior parte delas, o destino mudou-lhes os planos de futuro e os sonhos da juventude. Desse tempo de estudante resta-lhes apenas a saudade dos dias distantes.

Do outro lado do tempo, eu vejo também uma terra em crescimento, promissora e jovem, onde as unidades fabris, equipadas com a mais moderna tecnologia da época, se implantavam dia após dia abrindo novos horizontes no mercado de trabalho.

Do outro lado do tempo, eu vejo uma terra habitada por homens e mulheres de muitas e variadas raças. Moçambicanos de nascença, negros, indianos, chineses, brancos ou mestiços e portugueses naturais da longa Europa.

Trabalhando juntos, esse povo anónimo e simples caminhando em direção ao outro tempo, situado nos dias de hoje, e consolidando as bases económicas e sociais da atual pátria moçambicana à qual, de uma ou de outra forma, ficaram ligados para o resto de suas vidas.


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